Blog by Guedex
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segunda-feira, 24 de maio de 2010

A dor de Ricardo

Reprodução: Placar

Ex-capitão da Seleção Brasileira e hoje técnico, Ricardo Gomes conta à PLACAR o que nunca disse a ninguém: jogou a carreira toda com o jelho estourado e sentindo dores. Hoje ele tem dificuldades para fazer esportes e até para subir escadas

Foto: Renato Pizzutto

“A velha ainda anda?”, pergunta o médico Gérard Saillant, referindo-se à radiografia que olha junto ao médico do Paris Saint-Germain. “Anda, joga amanhã e pelo seu time”, ouve Saillant. O joelho revelado na chapa e comparado ao de uma velha é o de Ricardo Gomes, ex-capitão da seleção brasileira, que viu a cena sem ser notado pelo renomado médico francês.

A imagem do joelho deformado pela artrose é o símbolo da história dramática e pouco conhecida do personagem que, jovem, teve o joelho destroçado, superou uma infecção hospitalar e passou a carreira driblando a dor e a desconfiança dos médicos. Só não impediu que sequelas o tirassem de uma Copa.

Com quase dez anos de carreira (e de sucesso no esporte), o episódio num hospital de Paris não foi o primeiro em que um médico espantou-se com seu joelho. “Todos se assustatavam quando viam meu joelho”, diz, rindo, Ricardo.

Hoje, ele ri do sofrimento. A imagem vista pelos médicos franceses é conseqüência da contusão que Ricardo sofreu em 1984, quando tinha 19 anos. Num torneio na Coreia do Sul, pelo Fluminense, o zagueiro foi fazer a cobertura de Duílio e, ao girar o corpo, rompeu os ligamentos do joelho direito e a cápsula. Ricardo suportou quatro dias que a delegação ficou na Coreia e 27 horas de voo para o Brasil com muitas dores. “Fiquei o tempo todo na Coreia à base de gelo, mas o hotel tinha só uma máquina de gelo. Não podia andar”, afirma Ricardo. “Arnaldo Santiago era o médico na época e estava preocupado porque a cirurgia tem de ser imediata”, diz René Weber, ex-colega de clube.

Logo que chegou ao Brasil, foi operado. Dois dias após sair do hospital, os médicos constataram infecção hospitalar. Começava o drama. A somatória de lesão, infecção e um mês deitado na maca do hospital em convalescência culminou com uma recuperação mais longa — Ricardo Gomes perdeu 25 quilos em 30 dias no hospital. “Os caras iam me visitar e se assustavam porque eu estava muito magro”, diz.

Depois de cerca de nove meses de fisioterapia e tratamento no Fluminense, o zagueiro foi fazer seu primeiro treino no campo. “Quando ele chegou às Laranjeiras para correr, foi impressionante. Estava muito magro mesmo, assustava. E então ele começou a correr em volta do campo. Lembro que todos, jogadores e comissão técnica, começaram a aplaudir. A gente batia palmas e ele dava a volta no campo”, afirma René. Ricardo lembra: “É verdade. As palmas foram num momento que era só o início do trabalho. As pessoas estavam surpresas que eu estivesse voltando”.

Zagueiro de classe, canhoto, Ricardo Gomes voltou aos poucos ao futebol. Porém seu joelho não era o mesmo. “Durante a semana, não treinava conosco. Fazia esteira, musculação. Ele era um jogador privilegiado, inteligente, que sabia de suas limitações”, afirma Ricardo Rocha, ex-companheiro de zaga na seleção. No Fluminense, embora Gomes não se lembre de ter sido poupado de qualquer tipo de atividade, seu reserva na época, Alexandre Torres, recorda os treinamentos em que ele era preservado: “Se no treino a gente tinha que cabecear 100, 200 bolas, ele cabeceava umas 20 para não forçar o joelho com o impacto no solo. Na sexta, ele fazia o coletivo e no fim de semana jogava. E não perdia uma bola”.

A adaptação de seu corpo à nova maneira de jogar acontecia naturalmente. Suas passadas largas para marcar, com as dores, foram encurtadas. O maior incômodo vinha após os jogos, quando o joelho inchava. Como antes da lesão já não era veloz, ficou ainda mais lento. Mesmo assim, Ricardo se destacava e ir para a Europa era inevitável. Em 1988, Benfica e Barcelona queriam contratá-lo. No entanto, o joelho ruim novamente tornou-se um problema. Seu aspecto não era dos melhores e, quando tivesse de ser aprovado pelo departamento médico do novo clube, uma análise mais minuciosa poderia barrar sua transferência.

Ricardo, aconselhado pela comissão técnica da seleção brasileira, foi para o Benfica. “O Barcelona vai te reprovar”, ouviu. Ao chegar a Portugal, o médico do clube não estava, e ele foi examinado pelo substituto, que o liberou. “Quando o médico titular voltou, ele olhou para o meu joelho e disse para o que me aprovou: ‘Como esse cara está aqui? Você deixou ele passar?’ Depois olhou os exames e viu que não tinha nada de mais”, diz Gomes. Pelo menos, em campo não tinha mesmo. “Quando ele fez teste na Europa, corria risco de ser reprovado? Corria. Mas os técnicos o queriam, e não se arrependeram da escolha”, diz Alexandre Torres.

Às vésperas da Copa de 1990, ele sentiu mais um problema originado por seu joelho — a pubalgia. “Tenho certeza de que foi consequência do joelho. Para poupá-lo, eu forçava demais o púbis”, afirma Ricardo. Essa lesão, porém, não o tirou do Mundial. Aos 25 anos, operado e curado da pubalgia, foi convocado para ser o capitão da seleção na Itália.

“Ricardo tinha um programa especial, de musculação, mas era só. Ele sofreu mais com a pubalgia. Sobre o joelho, eu sabia da cirurgia, mas não percebi repercussões. Ele teve uma lesão e uma infecção séria, correu risco de morrer e a carreira também entrou em risco, e superou tudo”, afirma o técnico da seleção da época, Sebastião Lazaroni.

Em 1991, Ricardo Gomes foi contratado a peso de ouro pelo Paris Saint-Germain — e aprovado nos exames. “Os europeus acompanham tudo do jogador antes de contratar. Se tem lesão… Mas Ricardo era acima da média”, diz René Weber. No PSG, teve ótimas atuações. Mas o joelho ainda o incomodava. Sem a cartilagem, corroída, sentia mais dores. “Ele não fazia quase nenhum treino em campo. Era um fenômeno: não treinava e era um dos melhores. Não podia desgastar o joelho com treinos. Tinha que se guardar para o jogo. E jogava muito. Imagina se ele não tivesse esse problema?”, afirma Raí, que foi seu companheiro de PSG em 1994 e 1995.

A pergunta que todos faziam ao ver seu sofrimento era: “Com essas dificuldades, como ele conseguia jogar em alto nível?” A resposta soava uníssona: “Ele se adaptou às suas limitações e aliou isso à qualidade técnica”. “Ele tinha muito senso de colocação. Talvez a contusão o tenha ajudado a se posicionar melhor. Não perdia uma bola”, diz Raí. René completa: “Ele ficou até melhor depois da lesão, porque teve que aprender a se posicionar melhor para não precisar correr tanto e desgastar o joelho”.

Ainda no PSG, Ricardo se aproximava de sua segunda Copa, a de 1994. A oito dias do início do Mundial, já nos Estados Unidos, num amistoso contra El Salvador, o capitão se machucou de novo. Ao cortar um cruzamento, esticou a perna e estirou o adutor da perna direita. “Eu não abria tanto a perna e, quando abri, senti que havia estourado. Também tenho certeza de que essa contusão foi por causa do joelho, da limitação de movimentos”, afirma Ricardo.

Mesmo dizendo ter consciência de que seria cortado, foi fazer ressonância magnética para avaliar o grau da lesão. Ao lado de Lídio Toledo, médico da seleção na época, foi à sala do exame. Após o resultado, soube que seria cortado. “Fui avisá-lo da lesão e que não daria para ele jogar a Copa. Quando falei, seus olhos se encheram de lágrimas, os meus também. Dar essa notícia a ele foi muito difícil”, diz Lídio. Fora da Copa, Ricardo viu Dunga, o novo capitão, levantar a taça de campeão.

Em 1995, voltou ao Benfica. As dores ficavam mais fortes. A artrose o atrapalhava. No dia a dia, fazia fisioterapia e ficava fora de muitos treinamentos. Membros da comissão técnica, ao verem Ricardo entrando no campo para treinar, falavam: “Pode voltar para a fisioterapia. Você tem que jogar…”.

“De 1994 a 1996 eu não tenho boas recordações. Eu sentia muita dor depois dos jogos e ficava mal-humorado. Uma vez joguei com o joelho inchado pelo Benfica, estava com o saco cheio de tratar”, afirma o ex-jogador.

Pelo acúmulo de dificuldades, dores e privações, com 31 anos, Ricardo se aposentou. “Joguei o clássico Benfica x Sporting e no outro dia fui operado porque estava com muitas dores no joelho. O médico, que já era meu amigo, retirou um fragmento de osso de dentro do meu joelho. Ele falou: ‘Não sei como você conseguia andar com isso em você. Para de jogar’. E eu parei.”

Parou mesmo. Se no começo de carreira, por causa da lesão que o atrapalhou a vida inteira, tinha o joelho de uma “velha”, Ricardo provou que sua categoria e poder de superação atropelavam qualquer dor e limitação. A “velha” andou sim— e como andou…

Matéria originalmente publicada na edição de maio/2010 da PLACAR

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